Perspectiva
Um blogue sobre fotografia, por Luís Afonso

Ilhéu de Baixo visto da Calheta, Porto Santo

Regressar após o regresso


Este ano foi tempo de voltar ao Porto Santo. Local indissociável do meu percurso fotográfico, foi palco de inúmeras sessões de campo ao longo de mais de 10 anos de visita e também ponto de passagem de duas exposições individuais.

Embora menos do que em anos anteriores, não poderia deixar de visitar a Ilha Dourada sem a voltar a abraçar do ponto de vista artístico. Foi uma mão cheia de saídas em pouco menos de três semanas, suficientes para me voltar a conectar com aquela terra de carácter vulcânico. Neste processo, lembrei-me, uma vez mais, como é bom voltar vezes sem conta ao mesmo local para o fotografar.

Como resultado dessa reflexão, deixo aqui cinco pontos que me parecem importantes e que sublinham algo que costumo dizer: fotografar vezes sem conta no mesmo lugar está a um mundo de distância de fotografar vezes sem conta a mesma coisa em lugares diferentes.

i. Oportunidade de refazer ou refinar as nossas fotografias

Talvez o ganho mais óbvio de voltar ao mesmo local é termos a oportunidade de tornar a fazer uma fotografia que falhamos da primeira vez, seja porque ficou por registar ou porque algo correu mal nessa tentativa.

Recordo muitas vezes o regresso ao mesmo sítio para poder fazer a fotografia idealizada. Nem sempre a natureza nos oferece as condições perfeitas para a realizar e muitas das vezes é preciso voltar. E mais frequentemente do que se pensa, várias vezes.

Também há alturas em que temos de voltar porque algo não ficou bem à primeira. Ainda nesta viagem ao Porto Santo tive que regressar a um local para repetir uma fotografia. Simplesmente porque, da primeira vez, não levei tripé. Estando a fotografar à mão, mesmo com a pequena Fujifilm, houve alturas em que não consegui captar uma imagem nítida a 1/30. Quando cheguei a casa, tudo estava perfeito, excepto a nitidez da imagem. Esperei por um novo dia em que se repetissem as mesmas condições – neste caso um dia nublado – e lá voltei para repetir a fotografia, desta vez munido do precioso tripé.

Seja por falta de nitidez, por um pormenor na composição, por falta de uma objectiva mais longa ou mais ampla, muitas são as vezes em que é preciso voltar. E é tão bom quando isso é possível, pois dá-nos a oportunidade de fazer bem, de evoluir e de desfrutar uma vez mais de um local em que gostamos de estar. E por vezes, também mais usual do que se pensa, surgem novas oportunidades para fazer de novo, para renovar a mesma interpretação da mesma obra de arte.

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Pico da Gandaia, Porto Santo

ii. Conhecer o local de forma mais profunda, acompanhando a forma como se altera

Voltar ao mesmo lugar permite-nos também perceber a sua dinâmica e entender o seu ritmo. Estudar o modo como a luz abraça o local nas várias horas do dia, que elementos interagem com o ambiente durante esse tempo, como evolui o terreno nas várias estações do ano.

Todas essas alterações, cada marca que se implanta no local, constitui combustível fácil de inflamar a nossa criatividade e de nos inspirar.

Ao observarmos com atenção a forma como os elementos naturais mudam o espaço – chuva, vento, neblina, seca, fertilidade – também a nossa fotografia recebe os estímulos que precisa para avançar e para pensar e fazer diferente.

Ninguém, de forma consciente, gosta de fotografar a mesma coisa, no mesmo local, da mesma forma, vezes sem conta e isso impele-nos a procurar a diferença e a explorar novas formas de retratar. É neste exercício que aparecem muitas das vezes as marcas únicas de cada artista.

Diz-se muitas vezes que depois da paixão vem o amor, que depois do deslumbre vem o conhecimento, e o mesmo se passa com a nossa fotografia de um local de que gostamos.

Finalmente, o facto de nos fundirmos desta forma com um local suscita em nós uma sede de conhecimento do próprio espaço noutras vertentes. Foi exactamente isso que me aconteceu no Porto Santo. Não basta já fotografá-lo de forma intensa há alguns anos, é preciso também conhecer a sua geografia, a forma como se gerou, que pontos de interesse geológicos existem, os termos, as curiosidades. Falar do Porto Santo torna-se agora muito mais fácil do que antes de o ter fotografado.

iii. À medida que a nossa maturidade fotográfica aumenta, passamos a ver coisas diferentes

Se nas primeiras sessões de campo em 2007 raramente colocava o tripé a menos de um metro da água salgada, nos últimos anos são raros os momentos em que me achego da praia. Isto nunca esquecendo que o Porto Santo tem pouco mais de 42km2 de área o que faz com que de quase todo o lado se alcance o mar.

Ultimamente, tenho-me perdido mais pelas serras e pela terra e menos pelo mar. O Porto Santo é um local privilegiado para quem gosta de geologia e é também um lugar de sonho para uma fotografia de paisagem mais íntima, onde formas, texturas e tonalidades ganham um brilho especial.

Não é segredo das pessoas mais atentas que a minha fotografia se tem modificado nestes últimos anos, assim como espero que aconteça com todos aqueles que olham para esta arte de uma forma mais artística. E nessa evolução, não só a forma de ver se altera, também os objectos predilectos dessa observação mudam.

Por essa razão, é frequente verem-me agora de nariz colado a paredes rochosas e a troncos de árvores. E rochas com alma são o que não falta no Porto Santo.

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Moledo, Porto Santo

iv. Descobrir-nos a nós próprios na nossa relação com o espaço e a fotografia

Por esta altura já terão percebido que a esta comunhão entre espaço e fotógrafo é pródiga em revelações. Uma dessas revelações tem a ver com a forma como se olha para as coisas pela segunda vez.

Quando experimentamos rever um filme ou um livro, é frequente descobrirmos coisas novas. O deslumbramento da primeira vez dá lugar à procura da verdade e dos detalhes e não é estranho, nem raro entenderem-se as coisas de outra forma.

Também na música só a repetida audição nos permite usufruir a obra de arte na sua plenitude, memorizando cada nota e cada frase para depois ter a possibilidade de, como diz Edwin Gordon, audiar.

Na fotografia, podemos traçar um paralelo ao processo de audiação, notando que é imprescindível ao fotógrafo um bom vocabulário visual para se poder exprimir com bons resultados.

Esse vocabulário visual obtém-se também observando o espaço que nos rodeia, decompondo-o em imagens, olhando para ele de forma abstracta e íntima. E intimidade só se consegue com repetidos abraços, ou seja, visitas.

Tudo isto resulta num conhecimento de nós próprios como fotógrafos que talvez se descore à partida. Aqueles que passam a vida a correr de um lado para o outro à procura de prémios dourados e de ícones gastos pouco tempo terão para se descobrir. Tal como uma criança numa loja de brinquedos (ou nós próprios numa megastore de fotografia), tempo para brincar, explorar e crescer existe muito pouco quando o mundo nos atropela com tanto brilho e tanto açúcar.

v. Ter o gozo de passar mais tempo nos locais que adoramos

Às vezes perguntam-me porque fotografo. Uma das principais razões é certamente para poder estar em locais que me fazem sentir, que aceleram o ritmo cardíaco da forma perfeita. E a experiência de apenas poder estar é tudo o que chega na maior parte das vezes. Premir o botão do obturador é apenas um esgar dessa experiência e na maior parte das vezes, nem é a mais importante.

Todos os locais que escolho para fotografar significam muito para mim. Provavelmente que este significado foi sendo alimentado ao longo dos tempos por repetidas visitas, pelo que há aqui uma simbiose que faz nutrir os dois polos desta relação. Se por um lado a beleza do local me oferece a inspiração necessária, essa inspiração depois de transposta para o rectângulo fotográfico realimenta os meus sentimentos sobre o local e influencia em consonância a sua beleza ou a minha percepção dela.

Tudo isto torna-se num sistema infinito que me permite querer voltar dia após dia, ao mesmo tempo que sustenta a forma como sinto e ponho em prática a minha fotografia.

Quando algo, como a natureza, nos inspira a querer ser melhor, seja qual for o meio que usamos para o expressar, não há nada de mais puro e de mais lógico do que querer passar a vida inteira à sua beira. Há quem possa achar toda esta repetição algo maçadora. Eu, tal como um tal de Ansel Adams (que nasceu e morreu, enquanto retratava de forma exímia a sua Califórnia), prefiro pensar que “passar a vida” nos mesmos locais me ajuda a conseguir mostrar aquilo que ninguém vê. Simplesmente, porque é preciso estar para ver. Com tempo e silêncio no coração.

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Fonte da Areia, Porto Santo

Espero que estes cinco pontos vos incitem a voltar aquele lugar. Sim, aquele onde prometeram voltar e nunca o fizeram. Estou certo que a vossa fotografia só tem a ganhar. Eu por mim, despeço-me com um “até breve Porto Santo”.

Um comentário

  •    Responder

    Foi um prazer descobrir este blogue sobre fotografia, algo que me apaixona a sério à já uns anos. Está um trabalho digno e meritório, que ensina muito e nos dá outra visão na “Arte de Captar imagens”.

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