Perspectiva
Um blogue sobre fotografia, por Luís Afonso

Despertar a Criatividade


Se, tal como eu, já viu e reviu vezes sem conta o aclamado filme de Milos Forman sobre essa figura incontornável da cultura universal que dá pelo nome de Wolfgang Amadeus Mozart, pode por vezes pensar que a palavra génio está sempre associada a alguém que, de forma arbitrária, recebeu intensas graças divinas para vingar numa determinada faceta humana. Essa percepção, caro leitor, não poderia estar mais longe da verdade…

Na realidade, como brilhantemente testemunha Phil Grabsky no documentário “À Procura de Mozart” (2006), o génio de Wolfie tem tanto de divino como eu de hipóteses de ganhar o euromilhões. O brilhantismo de um dos maiores nomes da música ocidental reside fundamentalmente na educação que recebeu do seu pai, na sua constante motivação e determinação, na sua imersão no trabalho e na forma sistemática e apaixonada com que construiu cada uma das suas obras. O facto de ter escrito a sua primeira ópera aos 12 anos não se deve ao acaso, nem ao divino; deve-se sim ao facto de, desde os 3 ou 4 anos, ter tido um pai que lhe incutiu o gosto pela música e pelo trabalho, em cada segundo dos dias que passaram.

O mesmo se passa como os outros “génios” das restantes formas artísticas. E a fotografia, vista como tal, não se apresenta como uma excepção.

Mozart, é sabido, era um homem “irrequieto”. Não do tipo desvairado, como nos apresenta o filme “Amadeus” (1984) – com os seus risinhos de lunatismo Saleriiano -, mas do tipo de quem nunca está quieto perante o acto criativo. Por essa razão, assistia a inúmeros concertos, encontrava-se para conhecer e discutir ideias com outros músicos, ouvia muita música e, mais importante do que tudo, escrevia e reescrevia muita música.

A fotografia, quando vista como um processo de criação artística, não está muito longe da música, da literatura ou da pintura. E as formas como o processo criativo se constrói também não. Por isso mesmo, é fácil seguir pelos passos de Mozart e transportar para a fotografia os seus ensinamentos.

Fala-se muito de criatividade, da falta dela, de como a despertar. E de como alguns são bafejados por ela, como se de um sopro do Espírito Santo se tratasse. Na minha opinião, a criatividade educa-se, procura-se e, acima de tudo, experimenta-se.

Educar a Criatividade

Vamos então por partes. Como é que se educa a criatividade e como é que essa voz criativa se pode fazer ouvir. Mais uma vez, Mozart dá-nos o exemplo. Embora o acto de criação fotográfica tenha um cunho maioritariamente solitário, não há razão para que não usemos o ambiente cultural à nossa volta para lhe injectar combustível. É preciso ler livros, ver muita fotografia de qualidade (se possível acompanhada de textos que a complementem), trocar ideias com quem tem algo a dizer, procurar saber mais sobre o que nos apaixona e descobrir novos mundos dentro deste nosso próprio mundo. Como dizia Virginia Woolf, “as obras-primas não são frutos isolados e solitários; são resultados de muitos anos de pensar em conjunto, de um pensar através do corpo das pessoas, de modo que a experiência da massa está por trás da voz isolada”.

Por tudo isto, aconselho frequentemente a que deixem as redes sociais e o mundo da cultura fast-food e se entreguem à leitura e visualização de bons livros de fotografia. Também aconselho a que não se limitem à vossa área de eleição. Se fotografam apenas paisagem e natureza não deixem de que essa temática governe a vossa sede de conhecimento como numa ditadura. Livros fundamentais da história da fotografia, como os de Robert Frank, Diane Arbus ou Stephen Shore, devem ser estudados com atenção.

Depois temos os workshops, as master-class e as palestras, espaços de discussão por excelência, que aconselho a procurar quando do outro lado temos a certeza que há alguém que nos inspire, que nos guie, que nos ponha a pensar sobre o nosso próprio caminho. Como costumo dizer, um evento deste género tem que marcar de forma vincada o nosso percurso como fotógrafos. Se não o faz, não terá valido a pena.

À Procura da Criatividade

Um dos aspectos comuns a todos os génios é a sua vontade de fazer, de experimentar, de conhecer. Não é de estranhar, por isso, que a maior parte deles apresente uma obra extensa e prolífica. Esta vontade fértil só pode existir quando existe procura séria: pela superação, pelo desconhecido e até pela imitação. Stephen King disse um dia que a “imitação procede a criação” e são muitos os artistas que estudam as obras-primas dos seus heróis no intuito de as emular, acrescentando-lhes a sua própria visão, escrevendo o seu próprio futuro através deste processo. É como se ao copiar vezes sem conta o mesmo livro de um certo autor conseguíssemos no final reescrevê-lo usando a liberdade da nossa própria voz. Como é óbvio, esta fase de imitação não deve demorar uma vida, sendo que há uma altura em que fazer as fotografias dos outros com a nossa câmara deixa de fazer qualquer sentido. Infelizmente, nos dias que correm, é nesta fase que muitos se deixam adormecer para sempre…

Um dos exercícios que eu próprio coloco em prática é sair para o terreno munido de apenas uma objectiva. Experimente fazer isto. E se está preparado para levar somente uma fixa, tem todo o meu apoio. Vai perceber que a liberdade que isto lhe oferece para poder explorar o terreno e concentrar todo o seu sentir na natureza e nos seus impulsos é inultrapassável.

O Elogio da Experiência

Guy Tal, um dos meus fotógrafos favoritos, escreveu um dia que se tivesse de resumir a sua abordagem ao acto de fazer fotografia, seria assim: “experiência antes da estética.” Para ele – e eu arriscaria a dizer que também para mim -, se a experiência de criação não for compensadora, então nada terá valido a pena, qualquer que seja o resultado final ou o seu possível mérito. Essa é uma das razões pelas quais deixei de me importar com listas de sítios icónicos a fotografar, horas douradas e primeiros planos generosos. Todos os produtos desse tipo de abordagem, gasta, velha e fácil de pôr em prática, por muito espectacular e bonita que possa ser (ou parecer), é parecida demais com ir comer um hamburger a uma qualquer cadeia norte-americana: pode ser momentaneamente satisfatória, mas nunca passará de uma cópia barata do que se faz em número de milhões por esse mundo fora. Eu sei, pois também eu já gostei de ir beber a essa fonte…

Rui Vieira Nery, ilustre musicólogo português, dizia noutro dia, numa palestra que precedeu um concerto com obras de Mozart, que o compositor austríaco, na sua maturidade, “a cada obra que escrevia marcava um passo adiante na história da música”. Para se conseguir isto, tanto na música como na fotografia, é preciso entregar-se de corpo e alma ao acto da experimentação. E esta experiência, emocional e física, deve ser vivida sem as amarras de imagens pré-concebidas, fórmulas e regras usadas até à exaustão, a ditadura do “like” ou a necessidade de chegar a casa com “a foto”. Tudo isto são autênticos inibidores do processo criativo e da expressão individual do fotógrafo, algo que vos incito a esquecer.

Experimentem, sem o medo de falhar e sem se importarem com o que do outro lado possa vir (ou não vir). Não trabalhem para concursos da “Foto do Dia” ou outros, em que raramente se sabe quem está do outro lado a julgar, quais as suas intenções ou visão. Não submetam a vossa fotografia ao escrutínio de ambientes onde a criatividade, originalidade e expressão pessoal contam pouco ou nada. Ponham antes o vosso espírito e a vossa voz naquilo que vos faz ser verdadeiramente únicos. Mesmo que isso signifique nunca vão ter mais do que 5 “likes” no facebook. O meu, terão certamente.

 

4 Comentários

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    Luis Mozart arrisco a dizer que este foi um dos melhores textos que li teus aqui neste Blog! adorei o modo deambulaste entre o génio e a singularidade que um compositor como Mozart conseguiu ser e o modo como vês a fotografia. Já te disse que gosto deste genero de experimentação em que resolveste aventurar, pois as fotos passam a ser muito mais que apenas locais e passam a ser sonhos mergulhados em aguarela 🙂 mas continuarei a fazer fotos cliché tal como farei fotos completamente diferentes mas uma coisa é certa a paixão pela arte da fotografia já ninguém me consegue arrancar de dentro das entranhas.

    um abraço.
    Luis Jesus.

  •    Responder
    Baltazar machado Março 16, 2016 at 11:17 pm

    Brilhante……..

  •    Responder

    Entendo o conceito de genialidade intimamente relacionado com um nível extraordinário e excessional na realização de uma determinada tarefa ou actividade seja ela de cariz prático ou intelectual, sem dúvida fora da normalidade, mas não necessariamente ligado a uma graça divina ainda que não seja totalmente descrente de que também existam.
    Concordo que qualquer actividade ganhe engenho sempre e quantas vezes mais for repetida e estudada, mas não será o empenho o único ingrediente necessário ao sucesso. Acredito que todos nós teremos uma inclinação natural e porque não apetência e talento para determinados assuntos ou tarefas e que se nos dedicarmos a eles diária e afincadamente com certeza que nos tornaremos exímios em executá-la, mas o que me parece que é determinante para subir mais um patamar é a motivação. É ela que naturalmente move a criança e ainda que em adultos estejamos habituados a viver em esforço, é na leveza e no desejo interior e obsessivo por algo que nasce a possibilidade de subir a escadaria na direcção da genialidade. Mas se não concordo que a ocasião faz o ladrão, já a oportunidade de experimentar, explorar e praticar parece-me fulcrar no desenvolvimento de qualquer talento.
    E claro que a criatividade é um elemento a não descurar neste processo.
    Não parece ser do senso comum que todos temos capacidade criativa, mas de facto, tratando-se de uma função da mente humana, também ela só precisa de ser activada e desenvolvida por meio dos estímulos externos mas também internos. Como muito bem referes as leitura e visualização de bons livros de fotografia, frequência de workshops, masterclasses e palestras, no fundo espaços de reflexão, de partilha de conhecimentos e de inspiração. Foi num destes momentos no 1º Imaginature, em Manteigas que conheci o teu trabalho e percebi o que é criar e ter voz própria num meio onde tantos são exímios! Regressei a Lisboa com as tuas imagens, a palavra “elegância” na minha cabeça e uma vontade desmedida de um dia ser assim, não sei se genial, mas sem dúvida, brilhante!
    Foi assim que despertei para uma procura interna da minha própria voz.
    Um eterno obrigada!

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    Elsa Figueiredo Abril 14, 2016 at 8:37 am

    Bom dia Luis
    Gosto sempre de te ler.
    Vens preencher o vazio que sinto entre o que penso e o que não escrevo.
    Hoje ao ler estes 3 artigos, tive saudades das tertúlias da Fotonature
    Muito grata pelos tuas partilhas
    Um abraço de coração a coração

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