Perspectiva
Um blogue sobre fotografia, por Luís Afonso

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Viagem ao Interior


“Be yourself. I much prefer seeing something, even it is clumsy, that doesn’t look like somebody else’s work.” – William Klein

A minha viagem pelo universo da fotografia começou, em 1995, nos tempos da universidade, pela mão de um amigo que tinha transformado uma das divisões da casa onde vivíamos numa câmara escura. Às vezes, “roubava-lhe” a Cosina e fazia umas fotografias que depois ampliávamos a preto e branco. Nessa altura, pouco ou nada sabia sobre fotografia e eram nulas as aspirações à criação de algo artístico. Para mim, a fotografia não passava de uma brincadeira com algum glamour.

No meio de todo este acaso, a única característica de personalidade centrava-se nos objectos que escolhia para fotografar: interessava-me a cidade, as pessoas e a relação entre estas e o meio urbano que as abraçava. Surgiu assim o gosto pela fotografia de rua.

Nos nove, dez anos seguintes, fui crescendo na capacidade técnica de fazer fotografia. Aberturas, profundidades de campo, funcionalidades da câmara, tudo isto eu fui dominando para que pudesse ilustrar aquilo que via, mas muito pouco daquilo que sentia. Através da partilha e da participação em comunidades fotográficas na internet como o TrekEarth e o 1000Imagens, a componente estética ia-se aprimorando e os comentários positivos que recebia foram-se sucedendo. Enquanto as imagens que ia produzindo fossem esteticamente interessantes, tecnicamente corretas e, acima de tudo, bem recebidas, pouco mais importava…

Em 2006, comecei a fotografar paisagem natural. A panóplia de equipamento que possuía foi crescendo durante a viagem e para além de me manter estranhamente feliz sempre que um novo gadget nascia na mochila, possibilitava-me experimentar novos mundos, novas perspectivas, novas piruetas técnicas. Foi tempo de começar a explorar a natureza: locais belíssimos, de maior ou menor dificuldade de acesso, a horas que alguém baptizou de mágicas. Aplicavam-se as “fórmulas” apreendidas na irmandade da paisagem natural – das longas exposições, à rocha no primeiro plano, aos céus nublados de cor intensa – e garantia-se que o histograma era exposto à direita. Sempre sem estoirar…

Das pessoas para as montanhas, da rua para a praia, das praças para as florestas, o cenário mudou, mas o objectivo de fazer fotografia era o mesmo: a ilustração da realidade que se deparava perante mim, a procura “daquela” fotografia, a construção de imagens bonitas que gerassem interesse em quem as via. Cada vez que saía para fotografar tinha que publicar algo e os “gostos” alcançados por essa publicação eram escrutinados ao segundo.

Como em todas as viagens, chegamos a um tempo em que temos de definir claramente o nosso destino. Já não chega simplesmente navegar sem rumo e ir parando e voltando a entrar onde nos apetece e com quem nos apetece. Há um momento em que o acaso já não é suficiente para nos fazer continuar. E o interessante é que essa hora aparece, normalmente, quando viajamos sozinhos e temos tempo para pensar.

E é aí que começa a admirável viagem ao interior de cada um de nós.

Nesta minha viagem houve três frases de três amigos que me fizeram parar e descer do comboio. Paragens que serviram, cada uma a seu tempo, para mudar o rumo da minha fotografia para um admirável novo destino: o da subjectividade da criação artística.

A primeira foi proferida por um amigo, fotógrafo e companheiro de projecto de formação. Uma frase que continuo a ouvir recorrentemente. Ao olhar o portfolio de um dos mais venerados fotógrafos americanos de paisagem da actualidade dizia-me “Não tenho dúvidas, se lá estivéssemos, também seriamos capazes de fazer as mesmas fotografias“.

Ao colocarmos demasiada importância nas ferramentas que usamos e nos aspectos técnicos e estéticos da fotografia, limitamo-nos a ser meros registadores da beleza de um local. Somos admiradores passivos da paisagem, observadores da beleza e do drama que se desenrola perante o nosso olhar.

Se seguirmos essa linha de pensamento e tivermos a sorte de estar no local certo, na hora certa – ou se passarmos horas à espera que essa sorte surja, pois a sorte dá muito trabalho… -, quando as condições de luz vestem de gala a natureza, por certo conseguiremos gravar imagens de rara beleza. Nós e todos os que tiverem a sorte de estar ao nosso lado nesse momento. Seremos fotocopiadores da natureza em todo o seu esplendor, deixando de lado a imaginação e a subjectividade pessoal. Seremos ilustradores e nunca artistas, pois não tomamos parte activa na criação de uma narrativa dos objectos que decidimos fotografar.

Outra frase que ouvi de um amigo fotógrafo a quem recorro muitas vezes para uma crítica mais assertiva (daquela que te reduz a trapos sem rodeios) foi: “Não gosto desta tua fotografia, pois sei que foi tirada à beira da estrada“.

Tenho a certeza que também ele mudou e hoje certamente não diria isso, mas para além da veneração pela luz dourada e pelas regras do cânon paisagístico, há uma corrente de fotógrafos para quem a fotografia só conta se envolver dezenas de horas de caminhada, pernoita em locais de frio intenso, subidas a trilhos vertiginosos e outras actividades mais ou menos radicais que envolvam um certo grau de dificuldade.

Se não é selvagem, não conta como natureza.

Lembro-me de há uns tempos ter visto um vídeo making-of de um fotógrafo onde as rajadas de vento eram tão grandes que o tripé quase voava. E ele estava ali, lutando contra os elementos para fazer a imagem perfeita. No final, a fotografia já editada, para além de abertura, velocidade e ISO tinha também uma grande dose de adrenalina à mistura. Relatos como este, a contar os sacrifícios que são precisos fazer para captar uma determinada imagem fazem as delícias de todos nós. E qual será o objectivo? Elevar o valor intrínseco da fotografia? De quem está por detrás da câmara? Mas uma vez mais, onde está o processo criativo – um requisito fundamental para a existência de arte – no meio de todo este frenesim? Onde está a criação de algo que apenas vive na mente de quem está por detrás da câmara e que nunca existirá se essa pessoa não estivesse ali? Porque é que uma fotografia feita à beira da estrada, onde o fotógrafo, na sua interioridade, decide criar algo que de outra maneira nunca existiria, tem de ter menos “valor” do que uma fotografia feita no topo do Evereste…?

Finalmente, a terceira frase foi partilhada há uns dois ou três anos por um grande amigo que, não sendo fotógrafo, é apreciador de várias manifestações artísticas, sendo ele próprio músico e poeta. Dizia então: “As tuas fotografias são iguais às de todos os teus pares… Têm todas o mesmo aspecto“.

Embora a sua frase não deva ser entendida à letra, aquilo que ele queria dizer foi fundamental para marcar um entroncamento na minha viagem e para marcar um novo destino: a Arte.

Como todos sabemos, não é raro encontramos grupos de fotógrafos a competir pela melhor imagem de um mesmo e conhecido local. Aliás, a proliferação de sites de concursos fotográficos explica o sucesso desta abordagem. Mesmo que essa sua “nova” imagem seja igual a centenas de outras já registadas. Captar “aquele” local debaixo das condições perfeitas é sinónimo de beleza garantida, reconhecimento (e de muitos likes no facebook) e de alguns títulos do melhor fotógrafo do mundo. Como é óbvio, não há nada de errado nesta abordagem, embora alguns dos que seguem este blog tenham pensado que eu penso isso quando leram o meu artigo anterior. Tal como não há nada de errado em ver um filme todas as sextas em família, ou comer todas as quintas cozido no nosso restaurante favorito. É extremamente confortável continuar os sucessos do passado, ser fiel aos métodos que nos são familiares, ter um estilo que, não sendo próprio, é o nosso.

Mas para alguns, eu incluído, isto é como seguir viagem vendo recorrentemente a mesma paisagem.

Porque fotografo?

Decidi escrever este artigo, não só para contar como cheguei até aqui, mas também para responder a uma pergunta à qual prometi uma resposta: o que me faz sair de casa para fotografar.

Principalmente por duas razões. A primeira tem a ver com esta viagem e pelos caminhos por onde decidi seguir há pouco mais de um par de anos, rumo a paragens onde a criação de algo único e a subjectividade imperam. Como eu costumo dizer, eu quero que as fotografias que faço e publico sejam sobre esta pedra ou esta árvore, em vez de serem desta pedra ou desta árvore em particular.

Eu quero usar os elementos naturais para contar a minha história, contar aquilo que quem está ao meu lado a fotografar não veria se eu não estivesse lá e não lhe tivesse mostrado no LCD da minha câmara.

Em resumo, quero ser a peça central na criação da minha fotografia e gostava que quem dela desfruta possa perceber quem eu sou (ou pelo menos o que quero mostrar) através dela. Não é a beleza dos locais que eu quero mostrar: é a beleza que eu vejo nos locais que me interessa colocar diante de vós. E essa beleza, vista por mim, pode ser feia aos olhos de outra pessoa, porque, felizmente, nem todos vemos as coisas da mesma maneira.

Esta procura pelo “eu” na natureza explica a segunda razão pela qual fotografo: a vivência dos locais e a relação que com eles experimento no acto de criação. Falei exactamente sobre isso na minha última palestra em Vouzela, de como os lugares só fazem sentido quando os experimentamos, quando são companheiros de longa data e não apenas parceiros de ocasião. É esta sede de criar entre eles, de estar com eles, de os procurar para saber como estão e de como os posso retratar das mais diversas maneiras, sempre respondendo aquilo que a experiência naquele momento tem para exercer no meu processo de criação.

Tudo isto parece ser muito egoísta, uma vez que se centra muito à volta do eu. Mas não há outra forma de se fazer arte, de ser-se único e genuíno. A arte existe para elevar a nossa existência, para lhe dar significado. Se eu pretendo dar significado à forma como vivo a natureza, então não há como escapar do eu e da relação holística que mantenho com ela e com a arte. Se assim não fosse, faria realmente pouco sentido dedicar tanto tempo e tanto esforço a fazer fotografia.

A maior recompensa que retiro de tudo isto reside no contentamento obtido quando consigo criar algo novo. Quando consigo ser apenas eu, pensar como eu, criar como eu. A arte dá-me a oportunidade de me expressar como indivíduo, de partilhar respostas que consigo entender, mas dificilmente explicar. Como num sonho… E mais do que qualquer prémio, que qualquer reconhecimento, é este prazer de estar nos lugares a criar algo que me é íntimo que me inspira a voltar, sozinho, vezes sem conta.

E vocês, porque fotografam?

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