A Natureza da Arte
No início deste ano, o brilhante mestre-de-cerimónias do Festival de Vouzela – o também brilhante professor, comunicador, fotógrafo e amigo Rúben Neves – referiu-se a mim como um “estudioso da fotografia”. Eu talvez preferisse que ele me tivesse apresentado como fotógrafo, mas fiquei muito honrado com o título que me atribuiu, porque, na verdade, eu gosto mesmo de filosofar sobre fotografia, de conversar sobre fotografia e de ler sobre esta arte que a todos nos apaixona.
E foi numa dessas leituras – mais ou menos na altura em que o Miguel Serra me convidou para estar presente no II Imaginature – que descobri esta frase do Man Ray que é o mote perfeito para aquilo que gostava de partilhar convosco hoje.
Esta frase tem um complemento importante e é sobre ele que vos quero falar.
Para isso vou começar por vos apresentar um pequeno estudo – e estudo, aqui, é para ser lido entre aspas – que fiz com a ajuda das pessoas que me lêem no facebook. Escolhi 3 fotografias realizadas na Serra da Estrela, mais precisamente no Covão D’Ametade, e pedi às pessoas que respondessem a uma questão muito simples: “Qual gosta mais?”.
Esta pequena votação, embora não seja de todo um estudo científico, longe disso, dá-nos a oportunidade para reflectir nalguns pontos em conjunto.
Procurei apresentar uma primeira fotografia que representasse a imagem que qualquer pessoa, com uma câmara ou um telemóvel na mão, faria ao ser confrontado com a beleza arrebatadora do local; uma segunda que representasse (de forma mais ou menos efectiva) os cânones da fotografia de paisagem clássica e, em terceiro lugar, uma fotografia que mostrasse uma visão mais pessoal, mais subjectiva, mas intima e, necessariamente, mais artística.
Sem surpresa, das 300 e poucas pessoas que responderam ao meu repto, mais de metade escolheu a fotografia nº 2 como a sua favorita. Em segundo lugar, ficou a nº 3, seguida muito de perto da fotografia nº 1, com uma diferença mínima de 3 pontos percentuais. Aqui, tenho de confessar, surgiu uma primeira surpresa, pois estava à espera que a diferença entre as duas fosse maior. Outro ponto interessante é o facto de, dos votantes na fotografia nº 3, metade serem pessoas ligadas à fotografia. Houve também um equilíbrio perfeito entre as preferências de homens e mulheres, fazendo, no entanto, que seja esta a fotografia onde a percentagem de votantes do sexo feminino foi maior. Quererá isto dizer que as mulheres e os fotógrafos têm uma sensibilidade maior para gostar de fotografias como a nº 3? Fica no ar esta questão…
Não é surpresa nem para mim, nem para ninguém que ande no meio à tempo suficiente para o perceber, que a fotografia nº 2 iria ser a preferida, tal como iria ser, com certeza, a fotografia com mais “gostos” nas redes sociais ou maior “pulso” nos sites de fotografia. Este é o tipo de fotografia que mais estamos habituados a ver, que melhor personifica a beleza imediata de um local, que mais encanta quem está a começar a fotografar paisagem natural e está sedento em seguir a fórmula mágica que encontra em todo o lado, desde a internet às publicações da especialidade.
Por outro lado, a fotografia nº 3, invoca um sentimento diferente. Um sentimento em que não é o lugar que ocupa o ponto central da fotografia, mas sim a visão do fotógrafo e a subjectividade daquilo que sentiu quando estava imerso naquele momento. É o resultado de uma experiência e não de uma acertada conjugação de esforços entre a técnica fotográfica e a sorte – muitas vezes suada – de estar no lugar certo à hora certa para fazer o registo mais belo daquilo que a natureza nos decidiu oferecer naquele momento.
Há aqui um caminho claramente diferente entre as duas visões personificadas pelas fotos 2 e 3. Trilhos diferentes, mas nem por isso antagónicos ou desequilibrados em termos de valor fotográfico.
A visão mais documental da foto nº 2 é a ideal para apresentar um local, para nos fazer viajar, para mostrar algo que merece ser preservado, visitado ou simplesmente usufruído de forma visual. É o meio ideal para publicações de viagem e turismo, divulgação natural e científica, para constituir arquivo fotográfico de um lugar. É o terreno do foto-jornalista de natureza.
A foto nº 3 apresenta uma visão diferente onde o fotógrafo é peça central e não o lugar. É a expressão única da sensibilidade e técnica do fotógrafo enquanto criador que utiliza a natureza como o seu modelo e a câmara como o seu pincel. É um meio ideal para mostrar a fotografia enquanto disciplina artística, para figurar em livros de fotografia ou revistas onde a fotografia – e não o lugar – é o mais importante. Isto não quer dizer que este caminho não possa ser usado para a divulgação da preservação do mundo natural. Veja-se o exemplo de Elliot Porter que usava a sua arte para fazer exactamente isto.
Ao fotógrafo (tal como ao músico ou ao escritor, por exemplo) seguir por um ou outro caminho não é uma decisão simples. Especialmente quando não temos um propósito editorial/comercial para a nossa fotografia que influencie, à partida, essa decisão. Neste caso, acredito que o caminho certo seja o apontado pela foto nº 2, pincelada aqui e ali com uma visão mais artística para complementar e equilibrar o artigo, estudo ou elemento natural que estamos a apresentar. Isto porque, apesar de tudo, acredito existir sempre uma alma de criador no coração de um foto-jornalista. Mas para os que fotografam sem as “amarras” de um editor, a escolha pelo instituído, pelo popular, pelos céus vermelhos e dramáticos, é sempre o mais fácil de seguir.
Em primeiro lugar, porque já lá estás, porque o reconhecimento é “fácil”, porque há mais pessoas aptas a dizer “gosto” e porque, seguir uma fórmula testada e apreendida ao longo de anos é sempre muito mais confortável. E é claro, a tentação de ser popular e o retorno que daí advém é muito forte.
Se o fotógrafo perante esta decisão tiver como ganha-pão a promoção e venda da sua fotografia, então não há como não seguir por este caminho. É muito mais fácil comercializar uma imagem que todos gostam, do que estar a promover uma com uma visão mais artística. Veja-se o paralelo no mundo da música e da literatura e facilmente se entende o que quero dizer.
Nas várias entrevistas que já tive oportunidade de dar, sempre disse que nunca quis seguir uma vida profissional na fotografia, para poder fotografar aquilo que quero e que me realiza. E se decidi fotografar aquilo que quero, não faz sentido estar a fotografar apenas aquilo que as outras pessoas gostam. Talvez o reconhecimento – que nem sequer penso que seja elevado – desça, talvez a minha fotografia chegue a menos pessoas, talvez os meus pares olhem para mim com algum desdenho (do tipo, “lá está ele com a mania de que é artista”). Mas tudo isto são coisas que estou preparado para viver. Isso e a ausência de “gostos” no facebook.
Por tudo isto decidi tomar a decisão de abraçar uma visão mais próxima daquilo que representa fotografia nº 3. Uma visão que não me transforme num mero registador da beleza de um local.
Eu não quero ser um admirador passivo da paisagem, por mais incrível que ela seja e por mais fabuloso que seja o céu que a ilumina. Eu quero tomar parte activa na criação de uma narrativa daquilo que decidi fotografar e que tanto me apaixona em qualquer lugar, a qualquer hora do dia: a natureza.
Eu quero que a minha fotografia fale sobre esta pedra, em vez de ser apenas desta pedra.
Eu quero usar os elementos naturais para contar a minha história, contar aquilo que quem está ao meu lado a fotografar não veria se eu não estivesse lá e não lhe tivesse mostrado no LCD da minha câmara. E desta forma, espero dar o meu contributo para a preservação e divulgação daquilo que a todos nos deve importar: o equilíbrio perfeito entre homem e o mundo natural.
A assunção de que a fotografia só existe para ilustrar a forma como qualquer fotógrafo vê aquilo que existe na natureza é, na minha opinião, extremamente redutora. Pode ser uma visão, válida, mas não é certamente a única. A fotografia de natureza também pode ser um meio de expressão criativa capaz de apresentar conceitos mais profundos do que apenas “isto foi o que vi”.
Man Ray que, para além de fotógrafo, era também pintor e cineasta, complementava a frase que apresentei no início com:
Para fotografar, mais do que uma câmara e um lugar bonito é preciso um ser humano que tenha algo para dizer. Na infindável complexidade daquilo que faz o seu ser.
O meu amor pela natureza não se limita a servir o propósito de apenas usar a fotografia como uma janela para o mundo. Eu também almejo a mostrar algumas coisas que não se vêem… mas que estão lá desde sempre. Coisas simples, como dizem os poetas.
E é por aí que segue o meu caminho. Um trilho pelo interior de mim, da minha subjectividade como fotógrafo e como apaixonado pelo mundo natural.
Mas chega de palavras. Convido-vos agora, antes de vos deixar uma última frase, a experimentar um pouco desta minha visão, através de algumas das imagens que fiz ao longo destes últimos meses.
Termino com uma frase que resume na perfeição aquilo que quis partilhar convosco. Há uns tempos, publiquei esta imagem na minha página de facebook.
Entre os vários comentários que recebi, houve um que me fez pensar e que mostrou que este caminho é mesmo aquele que quero percorrer. A pessoa, que assinava “Torrada e Meia de Leite” disse então:
“O horizonte não é uma linha. O horizonte está dentro de nós.”
E isto, na minha opinião, resume toda a essência da criação artística.
Ser o primeiro, muitas vezes não conta, mas neste caso espero ser o mais honrado dos que comentam, e sê-lo-ei certamente… Muito obrigado!
Bela reflexão, e tantas outras que espero vir a ter contigo sobre esta arte mas, sobretudo, pela forma como a encaramos, a cada dia que passa.
Abraço e até breve.
Já tive oportunidade de te dar os parabéns pessoalmente, mas faço-o aqui novamente – excelente artigo e apresentação!
Espero que sigas sempre o teu caminho, aquele que te dá mais prazer. Continua a partilhar connosco a tua visão que na maior parte das vezes passa completamente despercebida a toda a gente.
Antes de mais, os meus parabéns por este artigo fantástico !
Demonstra um caminho de pensamento e de análise da arte fotográfica e da utilização magistral da natureza nesse caminho.
Fico a aguardar por mais conversas destas !!
O importante mesmo é seres tu, por isso a tua “escolha” é perfeita.
És um excelente fotógrafo.