Perspectiva
Um blogue sobre fotografia, por Luís Afonso

'Impressionismo' Oseja de Sajambre, Picos da Europa, Espanha Junho.2014

Paixão pelo imprevisto


Antes de entrar em palco, pronto a iniciar mais uma das suas apaixonantes viagens musicais, o pianista Keith Jarrett, um dos nomes incontornáveis do Jazz, tenta esvaziar a sua mente o máximo possível. Tal como numa tela branca, pronta a ser pintada de fresco, a sua alma lembra um lago ao amanhecer à espera que a primeira pedra caída o faça vibrar. “Os sensores estão ligados, mas o pensamento qualitativo, cerebral não está a acontecer”, disse um dia.

Perante a excitação da próxima viagem fotográfica, são cada vez mais os que mergulham umas semanas antes – às vezes até uns meses – num estado cognitivo de completa absorção: é a escolha meticulosa do equipamento a levar, o estudo exaustivo das características orográficas do destino, a forma com a luz abraça a paisagem em cada hora do dia, seus ângulos e intensidade, nunca deixando de pesquisar e visualizar centenas de imagens daquilo que, por certo, irão encontrar.

O objectivo? O de tirar o máximo partido da viagem, responderão alguns.

Toda esta premeditação terá, por certo, as suas virtudes, mas também os seus defeitos. Tendo acompanhado dezenas de pessoas em experiências fotográficas mais ou menos longínquas, há de imediato uma característica que cedo desperta nas pessoas que se sujeitam a esta “ditadura” do planeamento: quando as condições que a natureza decide oferecer não são aquelas que se idealizaram, instala-se um estado de maior ou menor abatimento que é suficiente para despedaçar a motivação com que se caminha no resto da viagem. E, quando se viaja em grupo, esse estado de espírito pode alastrar-se aos restantes participantes, fazendo com que toda a experiência se extravie.

Para além disso, fazer a viajem antes de chegar, impede que se goze um dos maiores encantos de se estar num local pela primeira vez: a magia da descoberta e o deslumbre da coisa nova. Fotografar um lugar onde nunca se esteve permite abraçar ideias novas, usufruir de uma visão única, contemplar a essência das coisas de forma livre e intensamente pessoal.

Esta magia, tal como a tela branca de Jarrett, é o principal motor de ignição para a criatividade fotográfica, criando um bem-estar inigualável no acto de caminhar, de descobrir e de, claro está, fotografar. A fotografia de viagem faz-se no terreno, com aquilo que encontramos, tirando partido do que a natureza tiver preparado para nós. O segredo está em estar preparado para aquilo que tivermos o privilégio de experienciar e não para aquilo que, um dia, alguém nos disse que iríamos encontrar. Só assim poderemos contar a história da nossa viagem, uma viagem que tem tanto de descoberta de novas terras e novas pessoas, como também da revelação daquilo que somos como pessoas e como fotógrafos.

O importante é encontrar um equilíbrio entre planeamento e o inesperado daquilo que vamos encontrar. Tal como na vida, as coisas nem sempre acontecem como traçado e é isso que nos permite elevar os padrões da nossa própria existência. Também na fotografia (e na arte em geral), é esta capacidade de lidar com o inesperado que nos permite fazer coisas diferentes, únicas, que mostram a forma como olhamos para o mundo sem pedir a ninguém que olhe por nós.

A minha sugestão é que tenham uma ideia formada daquilo que possam encontrar no destino. Esbocem intenções, ideias, possibilidades para criar um portfólio que faça sentido. Preparem o equipamento para lidar com essas situações, sem nunca esquecer que o vão ter de carregar pelo caminho. Confortáveis com esse equipamento, estarão prontos para mergulhar nessa viagem de descobertas. A partir daí, sigam o vosso trilho e fotografem tudo aquilo em que a vossa imaginação pousar. Estou certo que quando chegarem, vão olhar para as vossas fotos com um sentimento muito mais íntimo. Será o resultado da uma viagem visual ao interior de cada um, usando apenas os elementos que encontrarem para a descrever.

Tal como num concerto de jazz, o segredo está em compensar o deslumbre da criatividade espontânea com uma boa dose de experiência racional. Sonny Rollins, saxofonista americano, partilhou um dia:

“O improviso é a habilidade de criar algo realmente espiritual, algo verdadeiramente nosso”.

Que as vossas viagens fotográficas possam também ser templos de descoberta. Experimentem mais, sintam mais, aprendam mais e, acima de tudo, estejam mais atentos ao que à vossa volta vos inspira a fotografar. E improvisem!

Um comentário

  •    Responder

    Parabéns Luís!
    Mais um fantástico post que me deu imenso prazer de ler! 🙂

    Fez-me recordar um artigo/entrevista que li há tempos, em que o fotógrafo, cujo nome já não me recordo, contava que evitava ao máximo ver imagens feitas por outros fotógrafos dos locais que pretendia visitar. Desta forma, e seguindo a ideia que tu defendes em cima, ele conseguia assim guardar-se para o inesperado! A sua mente encontrava-se como a tal “tela branca”, prestes a ser pintada e longe de qualquer ideia previamente concebida por influência de imagens de outros fotógrafos! É um bom exercício, é um facto! Contudo, acho-o também um pouco radical demais e ser mais defensor da tua opinião.
    Tem que haver sempre um bom planeamento, e para que isso possa acontecer é importante vermos bastantes trabalhos feitos anteriormente nesses locais, nem que não seja para nos apercebermos do que não devemos fazer!!! Evitar cometer os mesmos erros que os outros! 🙂

    Boas fotos e continua a deliciar-nos com os teus maravilhosos posts!
    Forte abraço!

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