Perspectiva
Um blogue sobre fotografia, por Luís Afonso

Sensualidade, 2013

Arte. Ou será impressão minha?


Com o Natal à porta, são muitos os fotógrafos que publicitam no seu site – e nas redes sociais – a venda de impressões fine-art. Embora me pareça um mercado com pouca expressão em Portugal, constitui uma realidade bem viva lá fora. De facto, uma cuidada impressão de uma fotografia que mexa connosco é decididamente um presente infinitamente mais bonito do que uma batedeira, uma nova indumentária ou um novo gadget. Mas eu, dizem vocês, sou um pouco suspeito para o afirmar. Afinal, também sou fotógrafo e aspirante a artista…

Mas o que é que é isso das impressões fine-art?

Para começar, eu desconfio sempre das palavras que não têm tradução para português. Fico sempre a pensar que dizem respeito a coisas que, na verdade, não existem ou, existindo, são tão raras que ninguém se quis dar ao trabalho de as traduzir. Neste caso, o termo fine-art ou fine-arts existe mesmo e está traduzido para português como belas-artes. A provar a seriedade e veracidade de tudo isto está uma instituição de respeito como a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. O que não existe é o termo “impressão belas-artes”…

Mas vamos por partes. O que será uma impressão fine-art? Será uma impressão de uma fotografia artística? A impressão de uma fotografia feita por um artista? Uma impressão feita por um artista na arte de impressão? Como veem, não é nada fácil perceber o que é isto. E o problema não está na falta de um termo português para a “coisa”; está sim na utilização generalizada e desvirtuada da mesma.

Fotografia fine-art

Para começar esta reflexão importa, em primeiro lugar, olhar para a fotografia como um movimento artístico. Os mais atentos sabem que o assunto me apaixona, mas também que é um tema difícil de gerar consensos.

Historicamente, as belas-artes compreendiam apenas cinco disciplinas: pintura, escultura, arquitetura, música e poesia, tendo como artes “menores” o teatro e a dança, as chamadas artes performativas. A inclusão da fotografia no mundo das artes é responsável por acesas e intermináveis discussões e ninguém sabe ao certo quando isso ficou selado nos livros. Certo é que foi preciso mais de um século desde a invenção da fotografia e mais de três décadas desde que Eastman comercializou o primeiro filme em rolo, para que a primeira colecção de fotografias fosse adquirida por um museu (leia mais aqui). Foram precisos ainda mais alguns anos para que, em 1937, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque abrisse a primeira exposição de fotografia da história.

O termo fotografia fine-art deve-se, no entanto, a um grupo de artistas que ficaram para a posteridade como a “Geração Fotografia”, em inglês “Pictures Generation”, termo cunhado pelo crítico Douglas Crimp, em 1977. Nomes como Cindy Sherman, Louise Lawer, Thomas Struth ou Andreas Gursky estão entre os proeminentes fotógrafos fine-art, artistas que usavam a sua câmara como uma ferramenta para exprimir o seu imaginário. Embora com estilos e matrizes diferentes, todos partilhavam a mesma forma de viver a fotografia. Em vez de a usarem como um processo de mero registo documental, científico, comercial ou jornalístico, serviam-se dela com o propósito “maior” de apresentar ideias com uma complexidade estética bem vincada, através do controlo preciso da composição, foco, luz, posição e edição. Aqui, o essencial está no artista e na sua visão da realidade. Uma realidade íntima e pessoal que nem sempre é visível pelo resto das pessoas.

Impressão fine-art

Se a fotografia fine-art deve então ser entendida como uma forma de expressão da visão criativa do fotógrafo enquanto artista, a impressão fine-art é um termo técnico com um significado bem mais alargado.

Em termos simples e puramente relacionados com o processo tecnológico associado, o importante é que se tenham em atenção questões relacionadas com a longevidade, conservação e preservação da fotografia depois de impressa. Para isso, aspectos como o papel e as tintas utilizadas no processo revestem importância acrescida. Para que uma impressão seja considerada fine-art, tanto os papéis (geralmente de fibras de algodão, kozo ou semelhante), quanto as tintas de pigmento mineral devem ser certificadas e normalizadas. O mesmo a dizer dos materiais utilizados para o acabamento da obra, tais como os passe-partout, vidros e restante material.

Mas há também que ter em conta o conhecimento técnico de quem vai imprimir, pois não basta ligar o computador e seleccionar “Ficheiro/Imprimir” para produzir uma boa impressão, na mesma medida que não basta clicar no botão do obturador para fazer uma boa fotografia. Um bom impressor tem de perceber quando uma imagem está ou não preparada para ser impressa, deve ter o conhecimento técnico que lhe permita tirar o máximo partido da fotografia que tem à sua frente em termos do resultado final em papel e deve, em conjunto com o fotógrafo, editar a fotografia para que esta reflicta a interpretação que o artista tem na sua cabeça e que pretende ver passada para a tela em branco.

A juntar a tudo isto, há ainda o trabalho de acabamento final, de emolduramento da obra, usando materiais que assegurem um padrão de qualidade de conservação de 100% PH neutro.

No final, é essencial que se assine e certifique todo o conjunto, apresentando a quem o vai receber a materialização física de uma obra-de-arte.

Uma impressão fine-art transforma uma fotografia em obra-de-arte?

Explicados os conceitos de forma breve, importa agora fazer uma pequena reflexão sobre o mundo das impressões fine-art e sobre aquilo que me levou a escrever este artigo em primeira mão.

É comum, ao acedermos ao website de um fotógrafo, lermos algures que “todas as fotografias neste site estão disponíveis para serem impressas em versão fine-art”. Como se a arte pudesse ser apresentada numa versão pronto-a-vestir, oferecendo a cada um dos visitantes uma varinha mágica capaz de transformar qualquer uma das fotografias em obra-de-arte.

Nicholas Friend, presidente da Breathing Color, uma das companhias de referência na produção de telas e papel fotográfico, dizia em resposta à pergunta “que conselho daria aos fotógrafos que desejam realizar impressões fine-art das suas fotografias”:

“Imprimir as vossas imagens em papel fine-art eleva as vossas fotografias. Apresenta-vos como artistas autênticos e possibilita que falem apaixonadamente sobre a vossa impressão, explicando a atenção que tiveram na sua criação. Estas subtilezas vão ajuda-lo a ganhar reputação. E isto, vai traduzir-se em mais dinheiro.”

Esta visão mercantilista da fotografia – e da arte – é, ela própria, uma antítese do processo de criação artística. Como se ao embrulharmos a nossa fotografia num papel premium a conseguíssemos transformar em algo diferente daquilo que ela, na sua génese, é. Na minha opinião, quem expõe a sua fotografia a este tipo de demanda não está preocupado com o valor intrínseco do seu trabalho; está sim focado em fazer dinheiro através da venda de impressões das suas fotografias.

Como é óbvio, não há nada de errado nisto e os fotógrafos são livres de fazer o que bem entendem com as suas fotografias. O que me preocupa é o efeito que esta banalização e mistura de conceitos exercem sobre a arte fotográfica em si. Se eu posso ir ao IKEA comprar uma impressão já emoldurada com mais de 1m, de fotógrafos reconhecidos, incluindo portugueses, por pouco mais de 50 euros, como é que se entende pagar 4000 por uma fotografia que muitos consideram “banal” como a “Rhein II” de Andreas Gursky.

É fácil perceber que a criação artística e o mercantilismo estão em pontos opostos do léxico humano e que na alma do criador de uma obra de arte não deve estar o número de euros que possivelmente poderá fazer com a sua venda. Por causa disto mesmo e porque os artistas também têm de comer surgiram no século XVIII os patronos, actualmente conhecidos como mecenas ou sponsors. Tal como exaltava William Blake, “onde há dinheiro não há arte”.

Voltando ao tema das impressões, eu não sou da opinião que qualquer foto se transforme em obra-de-arte quando imprensa em Ilford Gold Fibre Silk (um dos meus papéis preferidos) e com tintas pigmentadas de última geração, que garantem uma longevidade suficiente para não estarmos cá quando a fotografia começar a desvanecer.

A obra-de-arte deve estar na cabeça e no coração do fotógrafo e não deve ser influenciada por quem dela vai usufruir e muito menos de um possível comprador de uma das nossas impressões.

A fotografia nasce arte, não se transforma em arte.

Também por essa razão, não faz sentido a mesma fotografia estar à venda num banco de imagens por um punhado de euros ou ser impressa numa revista pelo mesmo valor, mas quando impressa de forma fine-art o seu custo passe para 100x mais. As fotos, ao contrário do que o senhor Friend diz, não ganham alma por serem imprensas nos seus papeis de várias camadas.

Por outro lado, deve ser, na minha opinião, o fotógrafo a definir que fotografias – se alguma – farão parte do seu catálogo de impressões. Um catálogo onde estarão as fotografias que está disposto apresentar ao mundo como fruto da sua criação artística, da sua visão, daquilo que tem a dizer sobre o mundo que o rodeia. E dizer através da utilização de uma câmara fotográfica e de um objecto físico representado pela impressão da fotografia que representa essa mesma visão.

Para além disso, o fotógrafo deve também controlar todo o processo de criação das impressões, desde à preparação das mesmas, à realização da “prova de artista” – colocar no catálogo de impressões uma fotografia nunca antes impressa é incompreensível -, à verificação cuidada de cada impressão da mesma de modo a garantir que aquilo que está a oferecer é fruto do seu trabalho e não de um processo mais ou menos aleatório de bits e bytes. A impressão deve representar a expressão física de todo o processo criativo, único e irrepetível.

Espero que tudo isto não vos tenha demovido da vontade insaciável de comprar impressões dos vossos fotógrafos preferidos. Nem tão pouco aos fotógrafos de permitirem o acesso ao vosso trabalho por esta forma. Apenas procurei dar matéria para que ambos pensem na forma mais cuidada de o fazer.

Ambrose Bierce costumava dizer, com o seu ar satírico, que uma fotografia é “um quadro pintado por um sol sem curso de belas-artes”. Possa cada uma das fotografias que imprimimos ser uma firme resposta contra isto.

Boas fotos e boas impressões!

Um comentário

  •    Responder

    Ótima leitura!
    Obrigado por compartilhar estas impressões sobre a fotografia. Acabei de descobrir o blog e vi que tem muitos textos, uma coisa rara nos conteúdos construídos por nós fotógrafos na Internet. Vou voltar para lê-los com calma.
    Cordial abraço

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